Ao excluir de seu seio os homens humildes que a construíram e os que ainda hoje a ela acorrem, Brasília encarna o conflito básico da arte brasileira, fora do alcance da maioria do povo. O plano dos arquitetos propôs uma cidade justa, sem discriminações sociais, mas, à medida que o plano se tornava realidade, os problemas cresciam para além das fronteiras urbanas em que se procuravam conter. Na verdade são problemas nacionais, de todas as cidades brasileiras, e nesta, generosamente concebida, se revelam com insurportável clareza.
Hoje meus alunos se perguntaram, em tom de reflexão - não estavam esperando que eu aparecesse com uma resposta - por que é que o dia de Tiradentes é feriado e o dia do descobrimento não. Eu ensino inglês, e embora estivesse longe, muito longe das minhas atribuições, eu achei que eu podia explicar pra eles que, apesar de o noticiário anunciar que hoje o Brasil fez 510 anos, não havia Brasil de que se falasse até 1822. Eles sabiam tudo, quem era Tomás Antônio Gonzaga e porque só mataram o Tiradentes. Da Revolução Pernambucana em 1817, em busca de uma liberdade pernambucana. Da Independência de D. Pedro I e tudo o mais. Mas ainda não tinham operado o dois mais dois do surgimento tardio do país. Expliquei que o Tiradentes foi feito herói da Independência. 21 de abril é feriado nacional. 22 de abril é uma data que tem sorte de ser lembrada.
Por isso também foi o dia 21 de abril, e não o 22, escolhido para ser a data da inauguração de Brasília. O movimento de que Tiradentes é mártir foi o primeiro a levantar a bandeira da instalação da capital do país no interior. A idéia era justamente a oposta que impulsionou a criação de Brasília: queria-se trazer a capital para mais perto da parte mais dinâmica do "país". Na Praça dos Três Poderes, em um daqueles monumentos, não me lembro mais qual (ou então era a inscrição no saguão do Congresso, realmente não me lembro), está escrito que "o sonho de JK" foi concebida pra seguir direitinho a aspiração que tinha o povo brasileiro desde os 1780. Balela.
Em comemoração, portanto, aos 50 anos de Brasília, resolvi assistir Brasília, contradições de uma cidade nova, um documentário de 22 minutos do Joaquim Pedro de Andrade.
Não é necessário mais repetir o que eu acho da qualidade técnica do Joaquim Pedro. Estou agora convencida de que se trata de um dos maiores intelectuais brasileiros.
Brasília foi feito sob a encomenda de uma loja Olivetti, como conta Bernadet, que ficava na (rua) W3. Depois que o filme ficou pronto, a direção da loja já não estava mais disposta a afrontar o governo (1967 foi o ano do recrudescimento da loucura ditatorial militar). O filme quase que não chega a público. Joaquim Pedro chegou a procurar o Niemayer para pedir ajuda, mas ele, cego, se recusou a acreditar na visão pessimista do curta. Uma cópia salvou-se, ficando arquivada no MAM. Com o lançamento do novo DVD do Macunaíma, em 2006, a Filmes do Serro conseguiu lançar esse curta quase inédito, como um dos extras do DVD. (Fonte: Carlos Alberto Mattos, 2007)
Brasília mostra com cuidado as disparidades da cidade como centro de poder político e de exclusão social, contrária em fato a todo o discurso que a cercava, quase sem tocar na questão da ditadura. O que há é uma entrevista com um nordestino trabalhador da construção civil, explicando que "antes" até tinha uma força do sindicato contra os desmandos das três (que eram na verdade uma) empresas construtoras, mas que depois... ele faz uma pausa... que "tudo mudou", a moçada tinha "pegado medo" de participar do sindicato.
Metade do filme é aquela rasgação pela grande maravilha faraônica que é Brasília, e como é moderna! A outra metade foi rodada em Taguatinga, criada pra que o crescimento desorganizado da cidade em função da população real da cidade não interferisse no projeto arquitetônico. Plano piloto para os pilotos. De candango bastam os dois enfiados no meio da praça.
"Os nossos braços foi que teve que derrubar essa mata, fizemos fogo, faziam fogueiras aqui, pra poder conseguir armar os barracos, ficou pessoas aqui no relento, uma época fria, que morreu crianças aqui de frio, e morreu adulto também."
A maior parte dos numerosos intelectuais que afluíram para Brasília atraídos pelo vulto do empreendimento humano e artístico deixou a cidade depois que 230 professores se demitiram da universidade, depois da crise ocorrida em 1965.
Não deixem de visitar Brasília, no entanto. Apesar do clima seco, a cidade é sim linda. E vistá-la, vê-la, é esclarecedor.
Brasília, contradições de uma cidade nova (1967)
Documentário, 22 min.
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Luis Saia, Jean-Claude Bernadet
Narração: K.M. Ekstein
Pra quem quiser ver o filme, ele foi incluído entre os extras do DVD novo de Macunaíma. E a Filmes do Serro, produtora dos filmes do Joaquim Pedro, sempre cuidadosa, providenciou fotos e um trecho do filme disponíveis na página do filme, e também o texto do Jean-Claude Bernadet.
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