quinta-feira, 22 de abril de 2010

Joaquim Pedro aos pedaços - Brasília, contradições de uma cidade nova

 
Ao excluir de seu seio os homens humildes que a construíram e os que ainda hoje a ela acorrem, Brasília encarna o conflito básico da arte brasileira, fora do alcance da maioria do povo. O plano dos arquitetos propôs uma cidade justa, sem discriminações sociais, mas, à medida que o plano se tornava realidade, os problemas cresciam para além das fronteiras urbanas em que se procuravam conter. Na verdade são problemas nacionais, de todas as cidades brasileiras, e nesta, generosamente concebida, se revelam com insurportável clareza.

Hoje meus alunos se perguntaram, em tom de reflexão - não estavam esperando que eu aparecesse com uma resposta - por que é que o dia de Tiradentes é feriado e o dia do descobrimento não. Eu ensino inglês, e embora estivesse longe, muito longe das minhas atribuições, eu achei que eu podia explicar pra eles que, apesar de o noticiário anunciar que hoje o Brasil fez 510 anos, não havia Brasil de que se falasse até 1822. Eles sabiam tudo, quem era Tomás Antônio Gonzaga e porque só mataram o Tiradentes. Da Revolução Pernambucana em 1817, em busca de uma liberdade pernambucana. Da Independência de D. Pedro I e tudo o mais. Mas ainda não tinham operado o dois mais dois do surgimento tardio do país. Expliquei que o Tiradentes foi feito herói da Independência. 21 de abril é feriado nacional. 22 de abril é uma data que tem sorte de ser lembrada.

Por isso também foi o dia 21 de abril, e não o 22, escolhido para ser a data da inauguração de Brasília. O movimento de que Tiradentes é mártir foi o primeiro a levantar a bandeira da instalação da capital do país no interior. A idéia era justamente a oposta que impulsionou a criação de Brasília: queria-se trazer a capital para mais perto da parte mais dinâmica do "país". Na Praça dos Três Poderes, em um daqueles monumentos, não me lembro mais qual (ou então era a inscrição no saguão do Congresso, realmente não me lembro), está escrito que "o sonho de JK" foi concebida pra seguir direitinho a aspiração que tinha o povo brasileiro desde os 1780. Balela.

Em comemoração, portanto, aos 50 anos de Brasília, resolvi assistir Brasília, contradições de uma cidade nova, um documentário de 22 minutos do Joaquim Pedro de Andrade.

Não é necessário mais repetir o que eu acho da qualidade técnica do Joaquim Pedro. Estou agora convencida de que se trata de um dos maiores intelectuais brasileiros.

Brasília foi feito sob a encomenda de uma loja Olivetti, como conta Bernadet, que ficava na (rua) W3. Depois que o filme ficou pronto, a direção da loja já não estava mais disposta a afrontar o governo (1967 foi o ano do recrudescimento da loucura ditatorial militar). O filme quase que não chega a público. Joaquim Pedro chegou a procurar o Niemayer para pedir ajuda, mas ele, cego, se recusou a acreditar na visão pessimista do curta. Uma cópia salvou-se, ficando arquivada no MAM. Com o lançamento do novo DVD do Macunaíma, em 2006, a Filmes do Serro conseguiu lançar esse curta quase inédito, como um dos extras do DVD. (Fonte: Carlos Alberto Mattos, 2007)

Brasília mostra com cuidado as disparidades da cidade como centro de poder político e de exclusão social, contrária em fato a todo o discurso que a cercava, quase sem tocar na questão da ditadura. O que há é uma entrevista com um nordestino trabalhador da construção civil, explicando que "antes" até tinha uma força do sindicato contra os desmandos das três (que eram na verdade uma) empresas construtoras, mas que depois... ele faz uma pausa... que "tudo mudou", a moçada tinha "pegado medo" de participar do sindicato.

Metade do filme é aquela rasgação pela grande maravilha faraônica que é Brasília, e como é moderna! A outra metade foi rodada em Taguatinga, criada pra que o crescimento desorganizado da cidade em função da população real da cidade não interferisse no projeto arquitetônico. Plano piloto para os pilotos. De candango bastam os dois enfiados no meio da praça.


"Os nossos braços foi que teve que derrubar essa mata, fizemos fogo, faziam fogueiras aqui, pra poder conseguir armar os barracos, ficou pessoas aqui no relento, uma época fria, que morreu crianças aqui de frio, e morreu adulto também."

Uma das coisas em que penso quando penso em Brasília é no Darcy Ribeiro falando no prefácio do O povo brasileiro sobre sua participação na fundação da UnB. Quando fundada, Brasília atraiu o fino do pensamento e da arte brasileiros. Eu quase não quero pensar no que ela é hoje, quanto a esse particular, mas no ano em que o Joaquim resolveu fazer o filme, encontrava-se já em triste situação.

A maior parte dos numerosos intelectuais que afluíram para Brasília atraídos pelo vulto do empreendimento humano e artístico deixou a cidade depois que 230 professores se demitiram da universidade, depois da crise ocorrida em 1965.

Não deixem de visitar Brasília, no entanto. Apesar do clima seco, a cidade é sim linda. E vistá-la, vê-la, é esclarecedor.


Brasília, contradições de uma cidade nova (1967)
Documentário, 22 min.
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Luis Saia, Jean-Claude Bernadet
Narração: K.M. Ekstein


Pra quem quiser ver o filme, ele foi incluído entre os extras do DVD novo de Macunaíma. E a Filmes do Serro, produtora dos filmes do Joaquim Pedro, sempre cuidadosa, providenciou fotos e um trecho do filme disponíveis na página do filme, e também o texto do Jean-Claude Bernadet.

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domingo, 11 de abril de 2010

Amor de leproso: Joaquim Pedro aos pedaços Couro de gato

(Ainda por cima, era um pão!)

Graças a uma contribuição providencial de uma amiga (beijos, Mari!!), que me tem fornecido filmes que estão difíceis de encontrar por aí, eu consegui a coleção de curtas do Joaquim Pedro de Andrade, que compreende:

O mestre de Apipucos (1959)
O poeta do castelo (1959)
Couro de gato (1960)
Cinema Novo (1967)
Brasília, contradições de uma cidade nova (1967)
A linguagem da persuasão (1970)
Vereda Tropical (1977)
O Aleijadinho (1978)

O que é muito conveniente, porque a pobre mim mesma não tem mais tempo de nada. Pois é, não tenho duas horas pra sentar no domingo e ver um filme, mas tenho 15 minutinhos pra ir seguindo a coleção de curtas. Joaquim Pedro aos pedaços.

Couro de Gato


"Quando o carnaval se aproxima, os tamborins não têm preço.
Na impossibilidade de melhor material, os tamborins são feitos com couro de gato."

Couro de gato é um curta de 13 minutos, de 1960. É sobre uns meninos da favela que caçam gatos pra fazer deles couro de tamborim, pra vender pro carnaval. Sem quase nenhuma fala, nem narração (exceto por essa frase aí em cima), Couro de gato é uma história muito bem narrada, o que desmerece ainda mais o Cacá Diegues, que em uma hora e meia de Ganga Zumba não conseguiu contar direito a história. Lembram que eu tinha dito que o Cacá não era nenhum Bertolucci? Bom, Joaquim Pedro manda tão bem na câmera dele que não é necessário compará-lo com Bertolucci. Ele é outra coisa, uma coisa só dele.

A história começa com uma cenas dos meninos caçando gatos pela cidade. Dá muito dó dos bichanos, quando a gente vê a cara de ganância com que os moleques olham pra eles, aqueles gatinhos fofos. Roubam o gato pidonho do resturante de bacana, roubam o gato da vózinha no parque, o da madame na mansão... aí eles saem correndo e a bacanada correndo atrás, polícia e tudo. Quando chega no morro, fica todo mundo lá embaixo, a madame mandando o polícia ir atrás dos garotos, mas o polícia fica só olhando pro morro: lá ele não manda nada.

A câmara mostra o olhar de desconsolo dos bacanas e depois os caminho vazios da favela, por onde os meninos tinham subido, e, finalmente, lá de cima, o moleque do gato da madame, com o bichano no colo. Ele senta pra fumar e comer e fica brincando com o gatinho, branquinho, peludo, lindinho, e aquela criança enamorada do bicho. Ele dá um dos biscoitos contadinhos dele (ele é pobre, não tem muita comida) pro gato, mas na hora que chega no último biscoito, ele tem que tomar a decisão.


Tem que ver a tristeza na cara do menino quando ele entrega o gato pro fazedor de tamborins!

Além de tudo, Couro de gato tem como música-tema o samba Quem quiser encontrar amor, do Geraldo Vandré. E todo mundo sabe que eu adoro filme com tema. E a música é linda!

Coisa linda, esse filme, o melhor até agora, mesmo com seus apenas 13 minutos. Vão ver! Tem uns pedacinhos no youtube, aqui.
A menos que você goste muito de gatinho, aí desrecomendo.


Couro de gato (1960)
Drama, 13 min.
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade
Atores: Francisco de Assis, Riva Nimitz, Henrique César, Napoleão Muniz Freire, Cláudio Correia e Castro, Milton Gonçalves, Domingos de Oliveira, Paulinho, Sebastião, Aylton, Damião

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terça-feira, 6 de abril de 2010

Ganga Zumba


Ganga Zumba, de Cacá Diegues (posso dizer Cacá ou devo dizer Carlos Diegues?), começa com a morte da mãe do Ganga, ou Antônio, no tronco. O que acontece é que antes de ir pro tronco, sabendo que ia bater as botas, ela chama outro escravo, Anoroba, e dá pra ele o colar dos Ganga, pra provar que o filho dela é filho de Zambi, e príncipe de Palmares. Então o Anoroba dá um jeito de avisar lá em Palmares onde o príncipe está - em boa hora, por que o Zambi tinha acabado de perder o herdeiro dele, morto na guerra - e um guia (o moço da foto do cartaz) vem buscar ele na fazenda.
Bom, só aí leva uma hora.

Eu estava meio seca de vontade de ver esse filme, achando que ia rolar umas cenas de guerra, de revolta escrava, ou de Palmares, ou alguma coisa, mas na verdade eles nem chegam a alcançar Palmares. O filme acaba antes.

Esse filme é da fase que o Cacá Diegues trabalhava com Cinema Novo, antes de "cuspir no prato em que se fez", como disse o Glauber, e se dedicar ao cinema comercial. (No que eu, pessoalmente, não vejo mal nenhum, adorei Xica da Silva.) Uma vantagem que filme do Cacá no Cinema Novo tem sobre a fase comercial é que tem bem menos sexo. De resto o filme é meio lento, tem umas imagens que ficam vários segundos na tela e você fica meio sem saber porque - o Cacá Diegues não é exatamente o Bertolucci, saca? Tem também umas cenas sobrando, sem razão de ser, e apesar disso a história não está perfeitamente narrada, eu e meu namorado ficamos confusos várias vezes, se perguntando "você entendeu o que aconteceu? porque ele falou isso pra ela? quem é esse cara? de onde veio esse outro cara?" e tecéteras.

Então a economia do "texto" não agradou a mim. Grande novidade. Mas não fica aí, no todo o filme é bacana. A história vale a pena ser vista - desde que você não se deixe levar pela esperança de ver batalhas (o Cacá não é muito bom em conduzir cenas de luta, mesmo dispondo de capoeiras finos) ou ser transportado pra dentro do universo de Palmares (eu sei que você tem curiosidade de "ver" esse lugar lendário tanto quanto eu). Mas enfim, a gente aprende uma porção de coisa sobre a realeza palmarense que não se aprende na escola nem em livro do Darcy Ribeiro. E tem o elenco. E tem a música.

Nara Leão.

Sacou?

Uma tristeza que a cópia que eu descolei estivesse tão acabadinha. Mas imagina, o moço faz o filme 50 anos atrás, com a tecnologia que eles tinham lá, aí ele fica apodrecendo no rolo um tempo, aí alguém troca de suporte, passa na televisão, alguém captura essa imagem (tem o selinho do Canal Brasil no canto superior esquerdo), tranforma em data de computador, eu baixo aqui, gravo no DVD em alta velocidade, aí, meu, não tem cópia que aguente, né? Tinha chiado, diversas vezes a tela ficou muito clara ou muito escura (filme P&B) e não dava pra ver nada. Uma grande tristeza mesmo. Acho que eu seria menos chata com o filme se tivesse podido ver ele em todo seu esplendor. Três vivas pro esforço de recuperação dos filmes antigos da Cinemateca Brasileira.

Enfim, flertei um pouco com Cacá Diegues, mas, no que toca o Cinema Novo, ainda torço mais pro time do Joaquim Pedro, até agora.


Ganga Zumba (1964)
Drama, 92 min.
Direção: Cacá Diegues
Roteiro: Cacá Diegues, Leopoldo Serran e Rubem Rocha Filho
Atores: Antônio Pitanga, Léa Garcia, Elizer Gomes, Luiza Maranhão, Jorge Coutinho

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sábado, 3 de abril de 2010

Meteorango Kid - herói intergalático



Com 85 minutos de duração, Meteorango Kid não é exatamente um longa-metragem. Ele não tem aquela unidade romanesca que se espera de um longa, ele é mais uma catada de esquetes alucinados, uns divertidos, outros não.

O que une a(s) história(s) de Meteorango Kid é o personagem principal, Lula, um bicho-grilo apaixonado pela própria cabelereira. (Eu ri muito da cena que ele entra na farmácia e compra um shampoo. E só.) O filme foi feito em 1969, no meio da ditadura militar, e dizem os especialistas que é uma oposição ao regime. Eu não vi. Eu vi o Lula entrar na UFBA e ignorar uma reunião de estudantes politizados que mais me pareceu o chá que a Alice toma com o Chapeleiro Louco e a Lebre Maluca. Eu vi muita tropicália e muita vontade de fazer cinema brasileiro. Vi um cartaz do O padre e a moça do Joaquim Pedro em cima da cama do Lula. Vi citações textuais de O bandido da luz vermelha do Sganzerla. Vi o contador de vantagens - "o papo mais manjado da Bahia" - dizer que tinha sido convidado pra trabalhar com o Gláuber.

Às vezes a gente perde a dimensão de quanto as coisas são antigas. Só pra ter uma idéia, quando Meteorango Kid foi feito, o Raul Seixas ainda morava na Bahia e tocava com Raulzito e os Panteras. O presidente Lula, há que se desfazer o engano de qualquer ligação por causa do nome, ainda não era líder sindicalista e tinha todos os dez dedos das mãos.

O Lula é o cara mais popular da faculdade, é o moço que atrai os olhares das mocinhas no ônibus por causa da cabeleira, é o rebelde que enfia o dedo no nariz e fuma maconha na sala de jantar com os pais, é o bandido da luz vermelha, é o batman, é o tarzan e é pirata. Ele é um herói. Até aí eu entendi. Tinha aquela coisa do cinema americano de filme de superherói, lembra? Então, o André Luiz Oliveira quis fazer o dele também.

Tinha também alguma coisa estranha acontececendo na época com discos voadores, que apareceu no filme do Rogério Sganzerla e apareceu nesse aqui também, e o Lula vai com uma repórter até uma aldeia de pescadores pra entrevistar os locais sobre o aparecimentos dos OVNIs, e acabam encontrando um gringo esquisito que diz adorar a natureza do Brasil. É, eu sei. Não faz muito sentido mesmo.
De qualquer maneira, daí o "intergalático".

O filme é um clássico do cinema marginal, ganhou o prêmio do público do Festival de Brasília (Candango!!!), não é qualquer coisa. Mas me lembrou os filmes que o Corvo fazia na época da faculdade, sem pé nem cabeça, só pra gente se divertir. Meu comentário quadrado, lá pela hora e dez do filme, foi "os caras ficam fumando maconha na Bahia e cinquenta anos depois a gente tem que assistir o filme deles..."



Meteorango Kid - herói intergalático (1969)
Ficção, 85 min.
Direção: André Luiz Oliveira
Roteiro: André Luiz Oliveira
Atores: Antônio Luis Martins, Milton Gaúcho, Nilda Spenser, Manuel Costa Jr. Caveirinha, José Vieira, Carlos Bastos, Ana Lúcia Oliveira, Adelina Marta




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