terça-feira, 20 de julho de 2010

A família Faria - Assalto ao trem pagador e Lili, a estrela do crime


Farejei aqui uma família bacana do cinema brasileiro. Uma não, duas. Mas vamos por partes, como diria a rainha Dona Maria. Primeiro teve a história do Grande Otelo. Achei que deveria ver uns filmes com ele, grande personalidade do cinema brasileiro como é. Também a Oficina Cultural aqui da minha cidade tem o nome dele, então pra mim é figura antiga, há muito de ver por que fazem tanto barulho a respeito dele. Eu sabia já que ele tinha feito Macunaíma no filme do Joaquim Pedro, mas um filme não basta, ainda mais sendo mais um do Quizinho, que eu já vi tantos, e precisava também ser uma coisa menos do diretor e mais do Otelo, então fui procurar, via Google, o que ver. Acabei achando uma entrevista com o Grande Otelo no Roda Viva, que rendeu até um post.

Só que essa entrevista rendeu muito mais que um post. Parece mentira, rasgação de seda, mas aprendi um bocado de coisa com o Grande Otelo. Por fim, de tanto comentarem lá, no Roda Viva, acabei descobrindo que pra ver Otelo, tinha que ver Assalto ao trem pagador, do Roberto Faria, feito em 1962. Aí é que as coisas começam a se enredar.

Pois bem, eu estava outro dia passeando no blog do Markito e acabei me interessando pelo cartaz de um filme chamado Lili, a estrela do crime. Curti porque estava para ver Matou a família e foi ao cinema, e pensei em fazer uma dobradinha policial. Lili, a estrela do crime é uma romantização da história da Lili Carabina, uma bandidona famosa dos anos 70 e 80, na mesma linha do Luz: de tanto sair no jornal, acabou virando heroína nacional. Rebelde-contestadora. Taí, gostei, pensei. Fora que isso é que é nome de bandido! "Lili Carabina"... Um dia boto esse nome numa gata que eu tiver...

Acontecemente que Lili foi dirigido por um camarada chamado Lui Farias, que é filho do Roberto Faria (o S a mais no nome do Lui é erro de cartório), que foi quem dirigiu Assalto ao trem pagador e se cobriu de prêmios e glória. Quanto às glórias do Lui, se você fizer uma busca Google nele, a primeira informação que vai encontrar é que ele é o marido da Paula Toller, aquela do Kid Abelha (banda que, aliás, fez a trilha sonora do filme). Pra quem é muito moço e não tem amigo quarentão, a Paula Toller é a queridinha de todos os meninos da geração dela e da seguinte, ela era a cobiça de todo mundo, mas quem faturou foi nosso querido diretor Lui Farias. Mandou bem!

No Assalto, o Grande Otelo faz um personagem chamado Cachaça. Não é um dos personagens centrais, mas dá pra ver bem porque elogiam tanto a atuação do Otelo. O Roberto Faria deu até um jeito de botar ele pra cantar e dançar no filme. Formado ator uma parte do no circo e uma parte do Cassino da Urca, onde ele fazia números musicais, Grande Otelo fez nome no cinema no período das chanchadas, ou comédias musicais, aquelas preto-e-branco. Fez uma porção delas! Formado, também, no Coração de Jesus, uma das mais tradicionais melhores escolas de São Paulo, homem cultíssimo, elegantíssimo, vocês tinham que ver, de terno azul marinho e meias vermelhas lá na entrevista do Roda Viva. Nesse filme a gente vê uma cena memorável dele, quando, vendo um caixão de criança, com o respectivo cortejo fúnebre, a pé, descendo o morro, diz: "Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia de cantar. É menos um pra se criar nessa miséria."


No filme também está a Helena Ignês, esposa do Rogério Sganzerla, que fez a namorada do Luz Vermelha e a Ângela Carne e Osso no A mulher de todos, que é dele também. É ela quem vai dirigir o roteiro da sequência de O bandido da luz vermelha, que o Sganzerla deixou com ela antes de morrer e que sai, espera-se, ainda este ano, com o Ney Matogrosso no papel principal.

É desnecessário dizer que Assalto ao trem pagador, carregado de prêmios como foi, é um ótimo filme, de altíssima qualidade técnica, com um senhor de um roteiro, personagens bacanésimos e do elenco não precisa nem falar. Mas também Lili, a estrela do crime é um filme jóia. Eu ri, eu ri, assistindo o filme! O figurino anos oitenta, a maquiagem glam rock, os cenários em que a Lili apavora, o barraco cor-de-rosa dela no morro, tudo é muito bom. Mas há que se mencionar o Reginaldo Faria nesse filme, fazendo o detetive que quer prender a Lili. O roteirista fez ele meio maluco, o cenógrafo pirou um pouco mais na batatinha (o apê do detetive...! tem até um consolo em cima da cômoda onde fica o telefone) e o Reginaldo foi na dança, e fez um cara completamente pirado. Mil vivas pra ele que ficou mesmo foi muito bom!

Reginaldo Faria é tio do diretor Lui Faria, irmão, portanto, do Roberto Faria que fez o Assalto, em que o Reginaldo também estrelou. Quando comentei dessa família com um amigo meu, ele disse "é o tipo de família que discute enquadramento na mesa do café da manhã". E com a Paula Toller enfeitando a mesa.
(O personagem principal, a Lili Carabina, quem faz é a Betty Faria, que, apesar do nome, não tem nada a ver com a família em questão.)

A segunda família são os Escorel, filhos de diplomata e queridos do Grande Otelo, mas isso é história pra outro post, depois que eu der lá uma vista nos filme deles.


Assalto ao trem pagador (1962)
Policial, 89 min.
Direção: Roberto Faria
Roteiro: Roberto Faria
Atores: Reginaldo Farias, Jorge Dória, Átila Iório, Ruth de Souza, Helena Ignês, Luiza Maranhão, Dirce Migliaccio, Miguel Rosenberg, Grande Otelo

Lili, a estrela do crime (1988)
Policial, 91 min.
Direção: Lui Farias
Roteiro: Lui Farias, Vicente Pereira, Aguinaldo Silva
Atores: Betty Faria, Reginal Faria, Mário Gomes, Júlio Levy, Miquimba, Colé Santana, João Signorelli, Patrícia Travassos

Dois filmões! Recomendo muito.


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domingo, 11 de julho de 2010

Matou a família e foi ao cinema


"Matou a família e foi ao cinema" é uma das frases mais famosas do cinema brasileiro. É o título de um média-metragem de 1969 de Júlio Bressane. O filme fala desses crimes sem sentido que a gente lê (lia) naqueles jornais de que se dizia "se espremer sai sangue". Aquelas manchetes com uma frase resumindo o caso da maneira mais macabra possível, pra você se espantar e comprar o jornal pra ler a notícia, e quando você ia ver, a manchete completamente distorcia a notícia e você acabava com os crimes mais banais num jornal que sujava sua mão. Tinha quem gostava, desses jornais.

Não é o caso de Júlio Bressane. Ele realmente te entrega a lebre que vendeu. O filme começa com cenas de um apartamente de cidade grande, com uma família de classe média já meio enlouquecida dentro. O filhinho, de uns 30 anos, enche o saco e acaba com papai e mamãe com uma navalha. E em seguida vai ao cinema.

Seguem-se outras história macabras, como as das duas mocinhas que se amavam. A mãe de uma delas descobre, fica fula, ameaça separar as duas e, no dia que pega elas no ato, acaba sendo sufocada pela filha, enquanto a namorada - numa cena bacaníssima - fica sentada numa cadeira, em segundo plano, lixando as unhas. Tem também a história do pai de família malandro e bêbado, que gasta a pouca grana que tem no bar, enquanto a mulher e o filho bebê passam fome em casa. Num belo dia a mulher dele diz que já está cheia, que já achou "quem a sustente" e que ela vai embora. Pai de família macho pode deixar mulher ir embora com outro homem? Dá-lhe pipoco na mulher e no bebê. E depois o cara fica lá sentado, a câmara focada no rosto dele, uma marchinha de fundo, e ele repetindo "Matei por amor! Matei por amor!"

Essas histórias são interferências na história principal, a que a história do moço que mata a família e vai ao cinema é um prelúdio. A história principal, aquele em que o Júlio Bressane passa mais tempo trabalhando, é sobre uma moça rica decidindo se separa ou não do marido chato, sozinha na mansão com a melhor amiga. As duas moças piram sabe-se lá de quê, fazem uma senhora festa (só as duas), e à noite, de pijama, já mais loucas que o batman, acabam se matando enquanto brincam com as armas da coleção do marido chato. O que rende umas cenas muito legais.




A questão é que quando elas tão quase pra se matar, aparece uma interferêcia de uma cena com as duas tranquilamente sentadas num parque, do lado de um carrinho de bebê, e uma delas comenta que foi ao cinema ver um filme nacional com o marido, sobre duas moças sozinhas numa mansão, que faz ela se lembrar "daquela noite em Petrópolis". O filme chamava Perdidos de amor, que era o mesmo filme que o cara vê no cinema depois que mata a família. E a gente fica meio perdido. Essas histórias, "aconteceram" como o assassinato da família louca do moço ou são só o filme que ele está assistindo? Ou talvez só a história das moças que é? E você se pergunta, então, o que é verdade e o que é cinema. No filme.
Confuso, né? Bom, também.

Matou a família e foi ao cinema faz parzinho com O bandido da luz vermelha do Sganzerla, de 1968. Os dois são grandes marcos do Cinema Marginal, que vinha surgindo como uma contraproposta, em tema e estética, ao Cinema Novo. São também dois policiais baseados em notícias de jornal. Em O bandido da luz vermelha, a narração era toda feita de manchetes de jornal da época, sobre o Luz e outras bizarrices que iam acontecendo. A diferença está em que, enquanto o Luz era um bandido-estrela, um rockstar do crime, Matou a família fala sobre crimes ordinários, que acontecem todo dia como pequenas tragédias particulares.

O filme de Júlio Bressane também me faz pensar também naquela música do Chico Buarque chamada justamente Notícia de Jornal, que começa com como se fosse uma manchete: "tentou contra a existência num humilde barracão" e termina com "a dor da gente não sai no jornal". Mostrando mais fatos, mais humanidade nas notícias macabras que a gente lia naqueles jornais "se espremer sai sangue", o Bressane dá conta dessa dor da gente que no jornal nunca sai.


Matou a família e foi ao cinema (1969)
Drama, 80 min.
Direção: Júlio Bressane
Roteiro: Júlio Bressane
Atores: Márcia Rodrigues, Renata Sorrah, Antero de Oliveira, Vanda Lacerda


Se você resolver ver, atenção que tem um remake de 1991 com o Alexandre Frota e a Cláudia Raia, dirigido por Neville D'Almeida. Não vi, não sei se é bom ou não, mas eu tenho o hábito de desconfiar de remakes.

A versão que está rodando na internet tem legendas em italiano. Não atrapalha muito. Eu achei usando um torrent mesmo, mas também dá pra ver no youtube, todinho.


DOWNLOAD TORRENT

sábado, 3 de julho de 2010

Garrincha, alegria do povo


Em dia de eliminação da Copa do Mundo, achei que fazia sentido assitir um filme sobre futebol. Mais um do Joaquim Pedro, Garrincha, alegria do povo foi o primeiro documentário esportivo do Brasil. É um média metragem de 60 minutos, a metade deles pelo menos com imagens das copas de 1958 e 1962, cheias de gols incríveis de Garricha e Pelé. Aliás, foi inspirada por essa obra do Quinzinho que eu botei o Garrincha nessa imagem aí no topo do blog. Esse moço aí com a bola no pé, entre a bandeira do Brasil império e o Glauber Rocha, é o Garrincha.

O filme informa que o Garrincha era "guloso e com tendência a engordar" e que era rebelde nos treinos de preparo físico, no Botafogo. Eu fiquei olhando aquilo e pensando, se fosse hoje, um jogador assim, o Dunga não tinha escalado! Tinha ido pra Copa do Mundo sem Garrincha! Não tinha?

Na final da Copa de 58, ano que ganhou o primeiro título, o Brasil tinha maior famão de perdedor de finais.

Os comentaristas internacionais (...) não indicavam favoritos, mas achavam que se a Suécia fizesse o primeiro gol ganharia o jogo, porque os brasileiros iam perder a cabeça na certa.

E a Suécia fez o primeiro gol. Mas ao invés de se desestruturar, como fez a selecinha do Dunga ontem, o Brasil reagiu, o Garrincha fez bonito, o Pelé finalizou e a seleção de 58 saiu campeã com 5x2 em cima dos suecos.

A Copa de 62 foi mais dramática. Garrincha, gordinho e desinspirado, não deu o ar da graça nos dois primeiros jogos. O Pelé foi que meteu 2x0 nos mexicanos, e depois, contra a Tchecoslováquia no segundo jogo, distendeu a virilha e ficou de fora o resto da Copa. Sem Pelé, a brasileirada tava tensa no terceiro jogo contra a Espanha, mas Garrincha tomou chá de "encontrei-me" e praticamente ganhou a Copa sozinho. Salve Mané.

O futebol exerce sobre a emoção do povo um poder que só se compara ao poder das guerras. Leva o país inteiro da maior tristeza à maior alegria. Para explicar esse fenômeno, há duas teorias. Uma diz que a bola de futebol é um símbolo do seio ou do ventre materno, de modo que se compreende o ardor com que os jogadores disputam o jogo e a preocupação dos torcedores com o destino da bola. A outra teoria, mais sensata, diz que o povo usa o futebol para gastar o potencial emotivo que acumula por um processo de frustração na vida cotidiana. O universo lúdico do estádio é um campo mais cômodo para o exercício das emoções humanas. O último apito do juiz devolve o torcedor a sua realidade, aos caminho que vão e partem da segunda-feira até que o ciclo se feche com o primeiro apito dum novo jogo.

O Quinzinho passa a maior parte do tempo falando de Mané Garrincha, de Copas vencidas e da admiração do povo pelos jogadores até que, no minuto 45 do filme, ele entra com esse texto aí em cima e começa a desconstruir a imagem fofa que tinha estando montando. Imagem de violência extrema atrás de imagem de violência extrema, no campo e na arquibancada, seguida de uma moçada toda sorridente, e finalmente deixando o estádio e voltando pra ele no domingo seguinte, Quinzinho fecha o documentário numa clave crítica. Será mesmo legal manter o povo assim na sina de exercer sua emoções humanas num estádio de futebol? Ou seria melhor a gente aprender mais que logo a se libertar do ciclo do apito a apito e aprender a ser gente?

Agora então que acabou a Copa, melhor voltar a falar de arte e de política, né?


Garrincha alegria do povo (1963)
Documentário, 58 min.
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, Luiz Carlos Barreto, Armando Nogueira, Mário Carneiro, David Neves


E com vocês, a palavra dos especialistas. Sobre Garrincha, alegria do povo, Dom Glauber Rocha:

GARRINCHA E A VERDADE 
Glauber Rocha

Analisar Garrincha oferece os dados finais para concluir um capítulo sobre as origens do Cinema Novo no Brasil; dispensa ao mesmo tempo, diante do próprio filme, perguntas e respostas precipitadas sobre o que é este Cinema Novo. Garrincha é o novo cinema nacional, assim como Vidas Secas e Sol sobre a Lama. Poderia caracterizá-lo como um cinema de autor realizado numa expressão técnico-estética, onde idéia e mise-en-scène significam um corpo ativo de realismo crítico. (...) Garrincha é um tipo de cinema-verdade e não cinema-verdade como um tipo de cinema. Exigindo um rigor terminológico, eu proponho o cinema de autor como cinema-verdade: para situá-lo como síntese Cinema Novo.  

E Sêo Nelson Rodrigues:


À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS
Nelson Rodrigues


(...) Amigos, eu tenho a maior desconfiança de qualquer documentário pelo seguinte: – o documentário é o mais burro dos gêneros. Isso por um lado. Por outro lado, o verdadeiro documentário é a poesia. Ou o sujeito recria poeticamente as coisas ou naufraga num pires d'água. (...) Se me perguntarem o que me impressionou mais na fita, eu diria: – as caras. Com a meticulosa, obsessiva paciência de um Proust visual, o Joaquim Pedro andou catando, no Maracanã, as reações fisionômicas da torcida. No ser humano, só a cara importa e o resto é paisagem. E, na fita, o que vemos é a máscara humana na sua infinita variedade. Uma coisa vos digo: – não há Nápoles, não há rio, ou mar, ou Via Láctea, ou aurora, ou poente que seja tão patético como as caras desdentadas que o Joaquim Pedro descobriu.

Ambos textinhos na página do filme no delicioso site da Filmes do Serro!


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